Não há nada mais gentil que os primeiros acordes de Transa de Caetano Veloso. A calma de uma mãe ao nos embalar é quebrada pelo primeiro verso de “You Don’t Know Me”, uma afirmação tão simples como respirar, dona da maior verdade (quiçá a única que exista): você não me conhece. E é só o que se pode dizer de alguém para alguém.

Afinal, nem mesmo psiquiatras, publicitários, artistas populares, amantes e qualquer pretenso donos das mentes do mundo, nenhum deles poderia afirmar, sem uma dose cavalar de mentira, que conhece o outro. As almas são opacas. Guardam nas entranhas os sentimentos que o próprio “sentido” desconhece. E por isso que se erra tanto, se vasculha na terapia as lembranças arquivadas, e se faz backup dos arquivos de computador. A ânsia por não esquecer.

O álbum Transa, lançado em janeiro de 1972, me lembra todos os meninos. E alguns homens. Tantos meninos, tantos homens. Diferentes uns dos outros. Encantadores à sua maneira. Eu passearia pela londrina Portobello Road, via do bairro de Notting Hill citada em “Nine out of Ten” com todos eles. Mesmo com aqueles que eu sequer lembro o nome. Recordo o jeito, os trejeitos, a maneira de me segurar. Talvez não fossem especiais, talvez eu me esquecesse quando o sol aparecesse, mas “You Don’t Know Me” vinha sempre me visitar nessas memórias sem tempo. Sem nitidez de lembranças.

Aquele mais tímido pedia desculpas para falar. Sorria encabulado, mas charmoso. Um meio sorriso, meia revelação. Inteira reflexão, é o que parecia. Aquele indecifrável sorriso de lado para revelar a pergunta suspensa. A revelação que nasceu para ser oculta. O outro, não pela voz, mas pelos movimentos, respira e transpira emoções por todos os poros e timbres de voz. Pelo abraço apertado, pelo barulho alto do engolir a água, pelas lágrimas compartilhadas ao perceber, por um milésimo de momento, a beleza dos clichês. There’s nothing you can show me / From behind the wall (Não há nada que você possa me mostrar / De trás da parede)

Foi na mão de um desses que eu resolvi pousar em modo pássaro e I know that one day I must die (Eu sei que um dia devo morrer). Liguei o rádio bem baixinho. Assim, não atrapalharia a orquestra que tocava a sinfonia de meus pensamentos. Apenas bagunçaria o silêncio do acústico voz e violão. A imaginação consegue fazer mais barulho que as obras infindáveis do metrô na Consolação, em São Paulo.

Em silêncio. E sozinha. E com ele prestes a entrar pela porta e a dizer qualquer coisa. Ou calar. Era quase como que não entender. Desconhecer, de repente, o poder e a serventia dos sentidos. Como se um dia eu tivesse chegado a alcançar o controle sobre algum dos cinco (seis?). Um abismo entre os mundos que eu criei, entre o que é ser e desconhecer o próximo instante. O valor maior do caminhar do estrangeiro em um país desconhecido.

Foi quando lembrei das suas mãos dentro da minha calça. Eu perdi o ar, ganhei o estremecimento insistente e desobediente das pernas. Só o sangue, que percorre as veias com mais velocidade que a gente pode prever, silenciou as extremidades. Pulsantes. Por pouco não fiquei nessa memória para sempre. Mas me lembrei de Lavoura Arcaica, do quanto eu me pareço com o protagonista André. Bêbado, epilético e rebelde, mas atado aos seios da família. Ao cesto de roupas sujas nos quais devemos mergulhar as mãos para lidar com os próprios demônios.

Se a gente pudesse descrever, datar, a vida seria uma confusão de cenas desarrumadas entre o início e o fim de uma linha do tempo. Das coisas que a gente quis, das que conseguimos e das quais desistimos. Um abismo entre o que conhecemos, o que aprenderemos e o mistério a rondar o porvir. A dúvida a botar fogo no tempo dos compromissos das agendas e cabelos brancos na cabeça.

E então eu percebi que as músicas de Transa me tornaram mais eu. Me desenharam num esboço de eixo no centro do meu universo sem encaixe em galáxia alguma. Uma por uma das sete músicas me disseram que eu sempre mais fugi do que estive em qualquer lugar. Me fizeram perceber que eles, confusos, sempre me cercaram. Principalmente quando um deles apareceu em um dia de chuva na avenida. Molhado e astuto como quem mora na filosofia. E eu evitando rimar amor e dor. Negando, como sempre, abrir as brechas para as chances naturais do imprevisível.

Depois desse dia entrei pela porta, cansada, e fui me livrando das coisas que pendiam sobre o corpo. Delicadamente, em uma desordem milimetricamente orquestrada, repousei os pacotes pelo chão. Não acendi a luz. A claridade que vinha da rua parecia sutilmente mais bem-vinda e delicada.

Caminhei até a cozinha e, descalça e sem pensar, peguei uma taça e uma garrafa de vinho. Sentei-me ao sofá enquanto derramava sorrateiramente o liquido púrpura nas encostas do copo de espessura fina e fria. “It’s a Long Way”. Encostei-a sobre os lábios e engoli a vida num trago. Num longo gole de torpor imediato. Um baque. Um quase perigo, já que nunca fui dessa gente fajuta sem desassossego no olhar. A vida é curta demais para não senti-la com o pulso acelerado. Por isso, vez em quando, escorrego ao falar. A honestidade, às vezes, requer o erro, a teimosia e uma dose de gentileza com a verdade.

Tudo em mim fala a verdade, mesmo quando eu minto. É preciso trocar os pés pelas mãos. Pedir desculpas. Existe um mundo inteiro para se mergulhar. Eu sempre caminhei para me afogar.

O silêncio era suficiente. O barulho dos carros, a música orquestrada da cidade que termina o dia, e “Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)” tocavam em conjunto uma harmonia que quase se podia bailar. O momento prestes a se revelar.

Tomei o jornal do dia e limitei-me a ler o horóscopo que insistia em demonstrar a previsibilidade da astrologia e a consulta inútil sobre próximos passos para quem é do meu signo. Para contar o pedaço de uma história que ainda ninguém escreveu.

Deitei com os olhos fechados e ainda assim era possível sentir a lágrima salgada e quente. Esperei pelo dia seguinte. Esse dia que sempre espreita à nossa porta, mas que em chegando, nada mais é que esse mesmo dia em que se espera o que virá depois, dali às outras vinte e quatro horas.

De bruços na cama, senti o cheiro macio do lençol que acabara de chegar da lavanderia e que havia disposto sobre o colchão de maneira que não o amassasse. Adormeci.

O sono, já intranquilo, foi interrompido pelas suas mãos a me acariciar a fronte, no curto espaço entre os dois olhos. E, com seus olhos negros me deparei assim que a sonolência se dispersou. Era você.

Havia acabado de chegar e cumprir um trajeto que observava cuidadosamente os passos dados por aquela que ele conhecia tão bem. Ele, eu sei, quase podia imaginar a expressão do meu rosto assim que entrou pela porta. Deitou-se ao meu lado na cama, por ora, quente. Olhou-me longamente, até resolver tocar meu meus olhos adormecidos. O silêncio já fora quebrado pelo disco ronronando na vitrola antiga. Era possível ouvir as pequenas imperfeições que a agulha do aparelho causava nas ondulações do velho disco de vinil. I'm in the silence that's suddenly heard / After the passing of a car / Spaces grow wide about me (Estou no silêncio que de repente é ouvido / Depois de um carro passar / Espaços crescem amplo sobre mim).

Assim ficamos durante longas horas. Mais do que deveríamos. Olhando-se, como se o malfadado passar do tempo não nos fosse tomar de assalto. É esse o medo de quem não quer ir embora.

Te abracei com cuidado e adiei as palavras para o próximo encontro, que também assim deveria ser, sem circunstância propícia ou planejada. Pedi que também o fizesse. Calar, às vezes, é a melhor forma de manter o momento. Suspendê-lo no ar para que dure o tempo de anos a fio.

Despediu-se de mim sem nada prometer. E assim eu queria, nós queríamos. Sem juras curtas de um amor infindo. Para gente como nós, a surpresa agrada mais que o compromisso acompanhado de flores vermelhas. E assim partiu. Prolongando o torpor, a serenidade e o tempo do não-dito.

Eu fiquei. Tomei mais um gole do vinho e dormi sobre os cheiros confundidos, deixando as pausas de “Mora na Filosofia” tripudiar sobre a dor que não havia me alcançado.

Arrenego de quem diz / Que o nosso amor se acabou / Ele agora está mais firme / Do que quando começou.

Depois entrei no carro de um amigo, rodei por horas.

Se Caetano afirmou melhor que o silêncio, só João, numa clara referência à obra de João Gilberto, me sinto impelida a contrariá-lo: melhor que o silêncio, o Transa.

Andar pelas ruas de São Paulo, em 2003, vinda do interior, era como estar em Londres em 1969. Sozinha, encantada e amedrontada depois de viver por 18 anos no interior. Era hora de mudar, de olhar por outro ângulo.

Eu nasci em 1985. Renasci 24 anos depois. O intervalo foi coberto de dúvidas. Me desencaixei para saber que eu nunca, na verdade, estaria no lugar em que todos estão. É um momento de completa lucidez quando você percebe que vive às margens do mundo, que as coisas acontecem paralelamente, independentemente da gente estar ali ou não. Que a gente vê o mundo como se estivesse dentro de um filme. Um mero espectador da dinâmica dos dias. Em completa oposição, o sangue continua percorrendo quente e ligeiro por todas as veias do corpo.

Não pertencer é pretensioso, mas experimente tentar ver tudo de fora. Acaba assim a magia do outsider, mais bonita e encantadora nas telas do cinema ou nas músicas do Caetano na Londres de 1967. Eu sou sempre alguém que não consegue alcançar a rotina, a beleza do que os olhos veem. Ou porque enxergam demais, ou porque a vista turva o suficiente para cegar.

O que me salvou foi morar na filosofia. Meu corpo marcado por lábios e mãos carinhosas. As que tive e as que esperei demais para ter. Encontrei nos meninos e homens, além das palavras que obviamente sempre foram meu Diazepam, a cura para enfrentar a monotonia, a solução para engolir o passar insistente do tempo.

Os amores, as palavras e a poesia, no entanto, não foram suficientes para me poupar dos acontecimentos mal vindos. E inesperados. Dessas coisas que a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. Das cicatrizes que duvidamos um dia ter.

Foi quando um dos meus melhores e mais recente amigo morreu. Na minha frente, nas minhas mãos. Eu ouvi do início ao fim a respiração ofegante, que começou com a bala de um revolver, e terminou com o esvaziamento da vida do corpo. A dor transposta na carne. Expressa em qualquer palavra enviesada.

Eu nunca achei que isso pudesse acontecer comigo. Viver com o peso de uma história capaz de virar a vida do avesso. We’re not that strong, my lord / You know we ain’t that strong (Não somos tão fortes, meu senhor / Você sabe que não somos tão fortes). Deu vontade de acreditar em Deus. De entender por que, afinal, você é roubado da sua chance de viver histórias, de construir outras. A coisa é tão forte que a gente não sabe se viveu. Vira mais uma lembrança. Uma lágrima que não deveria cair, mas insiste. O mundo se modifica. Muda de cor. Perde o brilho. Escurece. Te faz nascer de novo. Reaprender, porque tudo antes estava errado. Era e sempre foi uma ilusão. Uma confusão. A gente assimila a profundidade da água. Precisa recomeçar. Engolir. Acordar. Resistir.

Voltar aos desafios corriqueiros e sem importância.

Muitos adjetivos para explicar que o sangue não circula à altura dos olhos de quem está vivo, mas se percebe claramente nos olhos de quem abandona a pulsação. Deparar-se com a morte assim, faz com que entendamos, sem tempo para compreender, que viver é como não existir. Ter o esboço de si perambulando por aí. Um contrato sem assinaturas com muitas normas e deveres. Pouco impulso e improviso, mas com os momentos prestes a causar explosões nos planos e no cotidiano.

É assim que Caetano fala a verdade quando diz You don’t know me / Bet you’ll never get to know me (Você não me conhece / E aposto que nunca vai me conhecer) aqui, no meu mundo, para provar que a gente sequer é a mesma pessoa no decorrer do anos.

“Mora na Filosofia” é meu hino.